Salvo pela Literatura: Edmilson foi usuário de álcool/drogas e viveu nas ruas em países da América do Sul
- 30 de set.
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ARACAJU – Rua Abigail Ferreira Araújo Ramos, 390, Bairro Luzia, Zona Sul da capital de Sergipe. Nesse endereço funciona há cinco anos o sebo 'Cantinho Sempre Viva', que os mais dispersos, por causa do trânsito intenso da localidade e da correria diária, acabam "passando batido'. Difícil até entender, já que o espaço pulsa vida no verde das plantas e no colorido pintado na facha por um artista.
Quem desacelera a rotina e colocar os pés na loja, mergulha em um mundo de profundo conhecimento. Uma viagem pelos mais de 15 mil exemplares de livros — há quem fale em 20 mil — que podem levar a várias partidas. É possível sair pelas ciências exatas, passar na psicologia e ainda fazer uma parada no acervo de HQs.
O sebo é bastante movimentado, seja pela variedade das obras literárias ou pelo papo agradável e cheio de conhecimento do senhor Edmilson Batista dos Santos, 53 anos. Um empreendedor cultural aracajuano, que estudou até a quarta série do ensino fundamental e só descobriu a paixão pela leitura há menos de uma década.
“Quando eu estava lá no fundo do poço, me deram um livro de Alcoólicos Anônimos para ler. Deus falou comigo através de um companheiro, lá de Manaus, quando fui ajudar ele a vender livros na calçada”, lembra emocionado.
Cerca de 70% do acervo é formado por livros doados por pais, irmãos, mães e professores que faleceram na pandemia da Covid-19. “Comecei com quatro livros em 2020. Então, há um Deus que me disse: ‘Edmilson, isso aqui vai pra frente’. Eu acredito que essas pessoas me ajudaram pra ajudar outras que chegam com o mesmo problema aqui. Sigo como amigo, como confidente, como colega. Em cinco anos, o cantinho tá salvando muita gente”, pontua.

Quando o 'Que Vem das Ruas' esteve no Cantinho Sempre Viva, encontrou um grupo de clientes/amigos devoradores de obras. “Assim que ele publicou o livro no Instagram, vim correndo pra comprar. Fui mais rápido que o colega, que acabou sem a obra”, brinca o médico Amael Rabelo, que saiu com mais de 20 exemplares.
Pelo menos uma vez por semana, o professor de literatura Ernani Lustosa frequenta o sebo. “Sou apaixonado pelos livros desde os 13 anos de idade. Quando descobri o cantinho, nunca mais larguei. Seja pra comprar livros ou passar horas conversando com o proprietário, que virou amigo”, diz.

O músico Bera Akilas é de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, e apaixonado por esse espaço. Assim que chegou a Aracaju, fez uma pesquisa na internet e descobriu o sebo. “Vou fazer um show no Sonora Brasil, do Sesc, e aproveitei pra levar alguns exemplares”, conta.
O Cantinho Sempre Viva funciona na casa onde Edmilson nasceu, no dia 12 de agosto de 1972. Uma estrutura antiga, toda ornada pelo conhecimento e repleta muitas lembranças da infância. Nos fundos, a mãe dele - dona Edirani - ainda mora por lá. “Dormia numa cama, aí quando minha avó vinha de São Paulo, a gente tinha que sair da cama pra ela”, relembra.
As recordações mais recentes são a prova de amizade. O professor Felipe de Sena e Silva já era cliente quando o sebo começou na porta e era alvo de denúncias da vizinhança. Ele também foi testemunha de um dia de desespero.
“Uma vez, choveu muito na cidade e eu estava aqui com Edmilson quando o teto se transformou numa cachoeira. Tivemos que correr pra salvar as caixas de livros e evitar um prejuízo ainda maior”, narra.
Das mais de 15 mil obras, a mais importante não está ao alcance dos clientes/leitores. Ainda ganhará formato impresso, porque na cabeça de Edmilson já é uma realidade. No livro, que está escrevendo, contará sobre as viagens que fez, uma continuação de um projeto antigo.
"80% do que eu estava escrevendo eram muita mentira. Dizia que minha mãe era fazendeira, que meu pai tinha gado. Dizia pros meus amigos que eu falava inglês, francês, italiano. Sendo que mal falava sergipano, o nordestino, como dizem, né? Agora é meu testemunho de vida”, revela.

Álcool, drogas e as ruas
Quem não conhece a história do careca do sebo não faz ideia das lutas travadas, desde a juventude, contra o vício do álcool e das drogas. Elas se encaixam na explicação do médico Gabor Maté, trazida no livro Vício: o reino dos fantasmas famintos. Ela afirma que a inclinação para a dependência tem relação com as dores da alma, muitas surgidas na infância, nem sempre compreendidas pela sociedade, pela família e até mesmo pelas próprias vítimas.
Aos 17 anos, Edmilson foi morar na casa de parentes para tentar um futuro melhor no Sudeste do Brasil. Em São Paulo, fez o alistamento militar, mas nunca serviu à pátria. Adolescente, pressionado pelas regras, viveu as primeiras experiências com o álcool e a maconha.
“Bebia e fumava muito. Tinha que chegar em casa antes das 22h, senão ficava do lado de fora. Casa de parente, no primeiro dia que você chega é festa, depois vão te dar pescoço, vão te dar pé, vão te dar asa, enquanto o meu tio comia coxa, sobrecoxa. Isso foi me gerando raiva e daí eu peguei uma carona num caminhão com destino ao Rio de Janeiro e o cara me deixou em São Cristóvão”, justifica.
A liberdade o levou à Central do Brasil, a contemplar o Morro da Mangueira e a caminhar por bairros como Flamengo, Botafogo, Copacabana e Ipanema. “Dormia no Aterro do Flamengo, ali nas quadras de futebol. Quando consegui um emprego em Teresópolis, juntando carga de alface, tomate, passei a dormir na chácara. Foi assim durante dois anos”, enfatiza.

O espírito aventureiro foi despertado ao conhecer um argentino que viajava de bicicleta. Juntos, iniciaram uma longa jornada sobre rodas. E assim, cruzou o Brasil, do Oiapoque ao Chuí, passou pelo Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina e Chile. Sentiu o clima seco do deserto do Atacama.
“Só que na minha bicicleta tinha quatro litros de cachaça e fumava uma média de duas carteiras de cigarro por dia. Já não levava droga, porque estava em outro país, com medo das barreiras policiais. Não levava, mas sabia onde ficavam os pontos pra buscar”, afirma.
No fundo dessa viagem, Edmilson sentia saudade de casa. Não levava drogas na bagagem com medo de ser preso e nunca mais voltar. Em 2008, chegou ao Peru, onde ficou por cerca de 11 anos.
Só Por Hoje
Quem sempre fugiu das regras, passou a ser escravizado por elas. A autorização para ficar apenas 90 dias no Peru acabou se transformando em mais de uma década. Nesse período, perdeu a carteira de identidade, o CPF e ficou na invisibilidade.
“É como se eu caminhasse num abismo. Eu não sabia o que eu estava fazendo ali. Trabalhei numa chácara e toda semana meu pagamento era em cigarro, cachaça e comida. Não queria contar sobre o problema que tinha e estava passando”, reconhece.
Quando libertou-se dessa prisão, passou um ano em Cusco, na região dos Andes, a 3.400 metros acima do nível do mar. Ali, passou a ganhar dinheiro trabalhando como agente de turismo para Águas Calientes, também conhecida como Machu Picchu.

Naquela época, Edmilson era pele e osso, pesava 62 kg, tinha dentes quebrados e furados. O corpo tremia de fome, por causa dos longos jejuns. A mudança de chave para ele foi ter encontrado o grupo Alcoólicos Anônimos (A.A.).
"Estava dormindo debaixo de uma ponte quando algumas pessoas passaram e me viram catando garrafa. Comia muitas vezes do lixo, andava com a mesma roupa — como é cidade pequena do interior do Peru. Já tinha uma boa relação com as pessoas, e foi assim que me convidaram pra reunião, quando eu estava com uma garrafa de cachaça”, disse.
As reuniões ajudaram a ter uma vida sóbria, dizendo a cada dia ‘Só Por Hoje’, e a seguir os doze passos do A.A. Dessa forma, conseguiu voltar para a casa da mãe, recuperar os documentos e a dignidade. E hoje, vice exclusivamente da renda do sebo, com a qual consegue se manter e honrar com os novos e antigos compromissos.
“Tenho que fazer agora a segunda parte, que são minhas reparações. Já estou fazendo. Tinha muitas dívidas e estou ligando, me encontrando com as pessoas que devia há 10, 20, 25 anos e pagando. Só me mantenho sóbrio se eu conseguir pagar aqueles 10 reais que eu devia. É pouco, mas é dívida. Menti, vou lá pedir perdão”, argumenta.
Edmilson conta que não coloca mais a culpa no álcool, nem nas drogas. Hoje assume o protagonismo da própria vida e segue dando um passo por vez. Todos os dias, busca acolher os que tiveram um passado como o dele, na tentativa de mudar pelo menos uma história.
“Aqui no sebo entra morador de rua, pessoa drogada... trato de igual pra igual. Como se fosse minha mãe, meu pai, que eu já não tenho. Então, eu trato bem, porque já me trataram bem. Se eu puder ajudar, abrigar, a qualquer morador de rua. Eu acolho. Se eu puder ajudar com a minha experiência pra que esses moradores de rua tenham uma vida útil e feliz. Eu faço”, assegura, emocionado.

Uma vida feliz e de entrega
Quando Edmilson Batista passou a viver o ‘Só Por Hoje’, encontrou sentido na vida e até um amor. Certo dia, a professora Jeane de Oliveira foi ao sebo entregar livros, mas doou o coração.
Foi amor à primeira vista, regado pelo bom gosto pela literatura. “Tinha feito umas doações de livros e disseram que era para o sebo. Aí fui lá conhecer e fiquei. E lá se vão três anos e um mês”, afirma, com sorriso largo.
Amor que virou qualidade de vida para o empreendedor social e para quem se aproxima dele. A felicidade dele é levar o mesmo sentido descoberto no A.A., partilhado no grupo que frequenta, em Aracaju, e nas participações online em outros movimentos internacionais. O exemplo dele arrasta quem ainda sofre com algum tipo de vício.
“Cada história que eu vivi ou que eu encontro no sebo serve como seta. Sempre levo a mensagem do livro dos Alcoólicos Anônimos, que é de ajudar outras pessoas que estão sofrendo no álcool, na pornografia, pessoas que são comedoras compulsivas, viciadas no uso do celular. Situações que geram um transtorno mental e emocional”, frisa.
Edmilson sempre recorre às orações para seguir na missão e no propósito de manter-se sóbrio, ‘Só Por Hoje’. “Pra ter discernimento, olhar mais pra dentro de mim como ser humano e poder ajudar todos aqueles que chegam até mim”, reafirma.



Edmilson realmente é o cara com o trabalho que vem fazendo No Cantinho sempre viva. Sempre que vou lá, o acolhimento é bom e reforça nosso dia a dia com livros e palavras maravilhosas