top of page
Buscar

Presépio da vida: mulher grávida em crise renal sofre descaso em Aracaju

  • 26 de dez. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 27 de dez. de 2024




Se a Sagrada Família vivesse nos dias atuais certamente enfrentaria as mesmas dificuldades que passou há 2024 anos. É aí que percebemos que Belém não está do outro lado do planeta, mas bem ao nosso lado.


Pode ser uma esquina, a calçada de uma rua movimentada, uma simples marquise ou mesmo o viaduto perto da nossa residência. Pra muitas famílias, a rua é o único lugar capaz de acolher os que estão para chegar. Proteção? Só mesmo do Céu e de uns pedaços de papelão e tecido velho para envolver os recém-nascidos. São as manjedouras dos tempos modernos.


No dia 25 de novembro, no Centro de Aracaju, os gritos de Jayne, que carregava no ventre dela o Jesus das ruas, sensibilizou uma outra Maria (Luciana Galvão, do Projeto ‘Jantinha na Rua’). Apenas um retrato da invisibilidade nas ruas de nossas cidades.


Centro de Aracaju, 25 de novembro de 2024.

A noite chega nas imediações do Comércio da capital de Sergipe pra neutralizar a velocidade frenética de mais um dia de black friday. Com as lojas fechadas, poucas pessoas se arriscam em passar por ali, a não ser que estejam a caminho de casa, do trabalho ou se preparando pra enfrentar à noite na calçada, como fazem as cerca de 640 pessoas que (segundo dados preliminares do Censo da População em Situação de Aracaju/2024) todos os dias transformam as calçadas deste lugar em camas de cimento. 


É assim que tentam descansar em meio aos conflitos pessoais, ao medo da insegurança de viver longe da proteção legal, mergulhadas na condição de abandono e incerteza de mais um dia pela frente. Sim, as noites nas ruas são traiçoeiras. Tem gente que se suja com a própria urina/fezes na tentativa de afastar agressores, estupradores. Nem todo mundo sabe disso, mas reclama ao sentir o odor fétido, natural após dias vivendo nestas condições insalubres.


Há também quem faça do mangue às margens do Rio Sergipe um lugar de "proteção". Eles se embrenham nas manilhas, por onde escorre esgoto e circulam insetos/animais peçonhentos com o mesmo objetivo. O refúgio, acredite, é pela sobrevivência. 


Nestes lugares as fogueiras feitas com restos de material reciclável aquecem as noites frias, mas nem sempre resistem à chuva que também lava os corpos, arrasta a dignidade e os poucos "bens" que ainda podem acumular. Seja por causa da ação do tempo ou dos criminosos que não poupam a situação de miséria. 


Já vi muitos bacanas brincarem com essas vidas com se fossem objetos sem valor algum. Outros fazendo barulho só para garantir a fama de engraçados na turma e até jogarem bebidas e até combustível para apagar a chama dessas vidas, pelo simples fato de serem pobres (aporofobia).


Já vi também quem deveria proteger essas pessoas virar as costas, destruindo os barracos em nome da ordem social. Que ordem? Com base em qual legislação?


Naquela noite de temporal à vista, os gritos de uma jovem deitada sobre um colchão surrado, que a separava do chão sujo pelo vai e vem das pessoas, ecoavam na localidade. Era Jayne de 20 e poucos anos. Mulher em situação de rua mergulhada na própria dor. 


Alguns colegas, que também vivem os mesmos medos e insegurança, tentavam acalmá-la. Mas o que fazer? Para onde levá-la? Quem a receberia? Como seria transportada até uma unidade de saúde? Se muitas vezes são rejeitadas por profissionais nas unidades de saúde, onde nem sempre conseguem passar pela segurança do lugar. São corpos abjetos.


E não são poucos os que costumam demarcar o abismo social, espalhando palavras desmotivadoras e até depreciativas contras quem todos os dias lutas pra vencer a miséria. é comum afirmarem que são "seres sem direito algum, não contribuem com a Previdência, sustentados por nosso suor". Não é bem assim!


Os motivos a levaram à situação de rua? Só pra citar alguns: porque não possuem documentação; endereço fixo ou até por estarem cheirando mal, após dias sem um banho. Daí ser comum ficarem moribundos nas calçadas e praças à espera da equipe do Consultório na Rua, para muitos, o único meio de acessar as unidades do Sistema Único de Saúde (SUS). Um serviço gratuito e direito de todos os brasileiros, sem exceção.

 

O sofrimento daquela mulher chamou a atenção de uma outra, Luciana Galvão – do projeto ‘Jantinha na Rua’ - que naquela noite espalhava amor na região. As marmitas são meras desculpas para ouvir o clamor das ruas e somar-se à luta silenciada todos os dias pela sociedade.

 

Nem os gritos da moribunda comoveram o atendente do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) quando a voluntária, na tentativa de levar ajuda, ligou para o 192. A servidora parecia com pressa, sem paciência... A arrogância contrariava o trabalho do serviço tão necessário a todo e qualquer brasileiro. Finalmente, meio que forçada, enviou uma equipe ao local onde estava a paciente.


Os maus-tratos à Jayne continuaram. "População de rua não é serviço do Samu", esbravejou o motorista da ambulância assim que chegou ao local, "isso é função do ambulatório, do Consultório na Rua, não vamos levar, não. O Samu só atende emergência" (sic). Não sabendo ele, estar contrariando as determinações do Ministério da Saúde. É dever do Samu atender os casos de:


"- Trabalhos de parto em que haja risco de morte da mãe ou do feto; - Crises hipertensivas e dores no peito de aparecimento súbito; - Suspeita de infarto ou AVC (alteração súbita na fala, perda de força em um lado do corpo e desvio da comissura labial são os sintomas mais comuns); - Outras situações consideradas de urgência ou emergência, com risco de morte, sequela ou sofrimento intenso".

 

Depois da voluntária divulgar o descaso em uma rede social, o motorista – percebendo que poderia ser interpretado como dono de um comportamento desumano e antiético - colocou a máscara que já deveria tá usando. A colega enfermeira, sempre muito zelosa e profissional, percebendo a situação constrangedora, ignorou as ordens do colega plantonista e acolheu a mulher, prestou o atendimento devido. O condutor continuou insensível à dor. Deixou a enfermeira e uma outra pessoa em situação de rua conduzisse a paciente até a ambulância. Está tudo filmado!

 

A paciente foi levada a uma unidade de saúde ali perto. Horas depois constatou-se uma gravidez e infecção urinária. Ou seja, um serviço que cabia ao Samu e foi negligenciado.

 

A Lei 8.742 de 1993 garante "o acesso à saúde da população em situação de rua não pode ser condicionado à apresentação de comprovante de residência". Já as Portarias 2488/2011 e 2436/2017 do Ministério da Saúde tratam da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e preveem o Consultórios na Rua - eCR (Portaria 122/2012) "responsável por articular e prestar atenção integral à saúde de pessoas em situação de rua". Em momento algum proíbe o atendimento do SAMU. Direitos amparados pelo Decreto Federal 7.053 de 2009 o qual institui a Política Nacional da População em Situação de Rua garantido inclusive o direito ao acesso à saúde.


Diante de tudo isso, Jayne e tantas outras pessoas em situação de rua só precisam de respeito à cidadania delas para viverem com dignidade, longe da invisibilidade e dos julgamentos descabidos (balizados pelo achismo), e que ao invés de plantar amor, semeiam discórdia, ódio gratuito. 


Todos, sem exceção, precisamos repensar nossos atos, principalmente quando existem no caminho pessoas vulneráveis, algumas em grau extremo, como a jovem Jayne. Que tal "sermos menos juízes e mais médicos"? O próximo passo é com cada um de nós!

 
 
 

Comments


bottom of page